sábado, 17 de maio de 2014

Meio Século

Hoje não vou por paninhos quentes, nem sequer publicar algum projecto de costura criativa. Espero que gostem do texto que retrata, a década representativa da idade em que eu e muitos mais nos encontramos. Mesmo, sem saber se existe dialéctica entre o meu sentir e o Vosso, aqui está:


Sim, é verdade: Já ultrapassei mais de meia década dos meus 50 anos. Mais de meio século. Mais que meia vida - ou muito mais que meia vida, se pensar nos anos que lhe roubei entre vícios, como o tabaco, e outros prazeres, como noitadas e algum álcool à mistura, bem como outras asneiras, alimentares, por exemplo. Admitamos então: mais que meia vida.
E no entanto, um terrível vazio na hora de escrever. Não porque não tenha o que dizer, ou não queira dizer, mas porque inadvertidamente me lembrei de um texto notável de Vasco Pulido Valente, publicado na revista “K”, quando ele próprio fez 50 anos. O texto está em livro (“Retratos e Autoretratos") e eu fui buscá-lo. Reli-o. E lixei-me.
Que mais dizer depois do que ele disse? Um bocado quase ao acaso:
“Não há transição. A infalibilidade e a confiança perdem-se de repente. Ontem corria tudo bem, hoje corre tudo mal. Ontem não se fazia um erro, hoje só se fazem erros. A pessoa é a mesma: o corpo e a cabeça. As circunstancias são as mesmas, os outros são os mesmos. Por mais que se procure nada mudou. Só mudou o efeito que se produz no mundo. Um homem deita-se com o mundo aos pés e acorda com ele às costas”.
A imagem do peso e da passagem dos anos. Nada muda, e no entanto tudo muda. Que mais dizer? Que ideia acrescentar? Vasco Pulido Valente encontra aos 50 anos a sua essência: não quer saber do corpo para nada, só quer saber da cabeça, “numa indiferença fingida” - “afinal, a qualquer momento, ele (o corpo) pode acabar comigo”. Leio e reconheço nele uma parte de mim, é um facto, mas essa é a parte a que resisto e fujo, porque não me agrada nem me ajuda. Viver também é escolher entre os vários que há dentro de nós a quererem tomar conta de tudo.
Nessa luta que vou travando comigo próprio, noto uma diferença essencial, aos 50 anos, entre mim e o Vasco…: a sua lucidez e conhecimento fizeram-no pessimista - “O mundo está perigoso”, foi ele quem decretou há uns anos - enquanto a minha ignorância e prolongada falta de lucidez persistem em manter-me optimista. Eu sei que o corpo tem 50 anos - mas eu sinto-o com bem menos anos, mesmo quando ele me tenta acordar para a realidade. Eu sei que a cabeça tem 50 anos - mas a falta crónica de memória, aliada a uma incontornável curiosidade pela vida, não a deixam ter tantos anos. Alinhando com o que escreve o Vasco…, mas “à minha maneira”: já não acordo com o mundo aos pés, mas estou longe de acordar com ele às costas. Ainda não estou suficientemente satisfeito para me dar ao luxo de sentir mais que meia vida, até porque não me lembro de parte dela.
Há momentos em que julgo que está tudo no começo. Depois acordo. Há momentos em que sinto a angustia do tempo. Tento adormecer. Não pensar demasiado no passado nem perder muito tempo com o futuro são balanças que se equilibram e garantem um presente que me parece ser eterno, mesmo que pressinta que corre. Regresso ao Vasco…: “conta-se com angustia o tempo para trás e, a certa altura, conta-se com terror o tempo que sobra”.
Sim, o tempo. Passa mais depressa do que a minha capacidade de o absorver, de o viver, de o respirar. Não quero cair na tentação de o contar, seja para trás ou para a frente - e na fúria de evitar essa armadilha, tropeço no próprio tempo e, atabalhoado, acabo enrodilhado nele. Resultado: sinto que passa, mas sinto que corro ao seu lado, que tento não o perder da vista nem do coração.
Infantilmente, acabo por reconhecer que tenho orgulho em chegar aos 50 anos. Em ter conseguido chegar. Muitos ficaram pelo caminho, desistiram, conformaram-se, amoleceram. Deixaram de viver ou deixaram-se viver. Podem ter 45 ou 55 ou 60, que é igual, podem estar por cá ou ter partido - em todo o caso, arrumaram as botas.
Eu não arrumei as minhas. Talvez seja por isso, mais do que por causa do texto genial do Vasco Pulido Valente, que tenha agora dificuldade em escrever sobre esta mais que meia vida.
No fundo, só tenho duas certezas neste preciso momento: não, a vida não começa aos 50. Mas também não acaba. 
E uma linha na agenda dos dias: 

...tenho tanto para fazer...!